07 dezembro 2025

Sobre o fim da validação e a consciência tardia

    Há uma forma de relação que, à primeira vista, parece bem suave. Não tem gritos, não humilha e não ofende. Na verdade é o contrário, parece ser gentil. Se apresenta através de mensagens constantes, favores que são feitos sem pensar duas vezes e uma disponibilidade quase sem limites. Olhando de longe, poderia ser vista como uma amizade. Mas quando você chega mais perto e observa com um pouco mais de honestidade, descobre uma realidade diferente: uma pessoa que se apoia na outra como se fosse uma muleta emocional, sem perceber que ela é um ser humano completo. Nesse tipo de dinâmica, o “amigo” ou "amigos" não são realmente pessoas, mas sim serviços. É um suporte técnico, carinho sob demanda, reforço da autoestima, validação instantânea e atenção garantida. Não há um contrato explícito, mas existe um pacto silencioso: um lado oferece tudo, enquanto o outro dá muito pouco além da sensação de ser desejado e importante.
    O problema não reside no fato de alguém se interessar pelo amigo ou que esse sentimento não seja recíproco. Isso é parte da experiência humana. A distorção começa quando a disparidade é reconhecida, mas é justificada em nome de uma suposta inocência. A pessoa sabe que o outro sente algo mais profundo, percebe que a intensidade do cuidado não é neutra e que existe uma expectativa por trás disso. Ainda assim, tudo continua como está, porque o lugar de idolatria proporciona um conforto narcísico difícil de deixar. A frase “você é o melhor amigo do mundo” serve como um escudo moral e, ao mesmo tempo, como uma coleira. Enquanto isso, o termo “amizade” é utilizado como uma justificativa ética para um arranjo que já não é tão puro quanto parece. Essa dinâmica se torna ainda mais evidente quando outros relacionamentos aparecem na história. O parceiro emocionante, o romance principal, ganha o destaque, a paixão e a validação pública. O amigo útil fica com os bastidores, as ligações no meio da noite, os desabafos e as demandas. Um é o palco e o outro, o bastidor que mantém tudo em pé quando as cortinas se fecham. E a pessoa que está no centro da narrativa começa a se ver como uma vítima: vítima do namorado indiferente, do homem que não a valoriza, do sistema em geral. O que falta é um pouco de clareza: perceber que, enquanto aponta o dedo para a toxicidade alheia, reproduz um tipo de abuso mais sutil, mas igualmente real, transformando alguém em um reservatório emocional para suportar sua própria instabilidade e escolhas ruins para parceiros afetivos.
    O momento de ruptura geralmente chega quando aquele que sempre esteve disponível decide finalmente se afastar. Não há palavras, não há uma cena dramática, nada do tipo “precisamos conversar”. É simplesmente um corte. Bloqueio, afastamento, ausência. Nesse momento, uma reação previsível e reveladora aparece. Primeiro vem a raiva: como ele pode simplesmente desaparecer depois de tudo o que “recebeu"? Afinal, nunca prometi nada! Como se o tempo, a atenção e o carinho dados fossem presentes unilaterais, não uma troca desigual sustentada por carência, esperança e, muitas vezes, ilusão. Depois, vem a tentativa de resgate, que raramente surge de amor verdadeiro, mas sim de desespero diante do silêncio. A falta do outro expõe a dependência que sempre esteve ali, mas que foi disfarçada de ativismo, consciência e conversas sobre igualdade.
    Quando nem o drama, nem a culpa, nem a sedução funcionam mais, uma fissura se forma na narrativa interna. Fica claro que o outro não era um objeto emocional garantido, mas alguém que, mesmo machucado, decidiu por fim à própria autoanulação. A percepção muda de direção. De “ele não aguentou” passa a ser “ele finalmente se escolheu”. De “foi fraco” para “teve a coragem de romper o ciclo”. Essa mudança é insuportável para quem sempre se viu como o lado moralmente superior da história. Aceitar que aquele homem considerado “seguro demais”, “sem graça” ou “sempre disponível” era, na verdade, alguém capaz de impor limites, desmonta a fantasia de controle. E é aí que surge a possibilidade de consciência, se houver coragem para olhar sem desculpas.
    A verdadeira mudança não acontece quando a pessoa é ignorada, rejeitada ou bloqueada. Acontece no momento em que se percebe que não se tratava de um admirador eterno, mas de alguém que deu o que podia por tempo demais e, em determinado momento, decidiu parar. Não foi o amor que desapareceu de repente; foi a tolerância em relação a uma estrutura injusta. Ver o outro seguir em frente, reconstruindo sua vida e encontrando alguém que não o trata como reserva ou plano B, se torna um espelho desconfortável. Mostra, com uma clareza difícil de apagar, que o que parecia ser “amizade pura” tinha, na prática, uma boa dose de exploração emocional. Por trás de todo o discurso de consciência, existia também uma necessidade de controle, posse e validação que nunca foi realmente examinada.
    O que sobra no fim é o silêncio. Não aquele silêncio romântico que aguarda um retorno, mas o silêncio ético de quem precisa encarar sua própria responsabilidade. E é nesse espaço que a narrativa de vítima começa a perder sentido, dando lugar a algo mais duro e útil: a percepção de que não foi só azar, não foi apenas uma má escolha de parceiros e não foi apenas “eles que não prestam”. Também houve omissão, conveniência e a manutenção deliberada de alguém em uma posição inferior para preencher buracos internos que nunca foram confrontados de forma direta. Reconhecer isso não traz de volta a amizade perdida ou a pessoa que seguiu adiante, não apaga os danos causados. Mas abre, pela primeira vez, a chance de construir vínculos que não sejam assimétricos, onde ninguém esteja em um pedestal e ninguém seja uma muleta, e onde o cuidado não seja confundido com adoração cega ou com um serviço emocional permanente.

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